Catherine não era uma mulher com senso de humor leve. Sono, tampouco. Sua vida não havia sido particularmente difícil. Foi criada por seus pais, um casal amoroso e sábio, mas sofreu perdas ao longo do caminho. Perdeu outros, e perdeu parte de si. Em uma noite habitual, costumava trancar sua porta, beber o copo d’água que trazia da cozinha, deitar-se e cair em sono profundo cerca de 5 minutos após fechar seus olhos. Essa rotina era o suficiente para mantê-la tranquila pelo resto da noite, até que o sol começasse a brilhar por sua janela.
Aquela não era uma noite habitual.
Uma batida na porta de seu quarto não foi o suficiente para acordá-la, mas uma saraivada, sim. Abriu os olhos, o que por si só já foi o suficiente para irritá-la. Levantou-se e enrolou seu corpo em um roupão simples que apenas fingia a cobrir.
Atravessou o quarto para encontrar seu sobrinho Raymond do outro lado da porta. Animado, o homem de 20 anos ignorou a irritação de sua tia e contou sobre seu pressentimento.
Raymond e Catherine, assim como muitos parentes que vieram antes deles, possuíam uma forte familiaridade com o Oblívio, o pós-vida habitado apenas por almas que tiveram suas almas lavadas. A Cidade do Porto também mantinha relações com o além. Lá, as águas da Lagoa do Esquecimento, responsável por lavar tantas memórias, transbordavam para nosso mundo, criando uma chuva mística sem fim. Essa chuva causava mais do que apenas previsões do tempo entediantes, mas também os garantia acesso a rituais mágicos e a oportunidade de pressentir certos eventos
Dentre os eventos mais comuns, estavam as noites de corvos, quando memórias vazadas personificavam-se em aves azuladas para sobrevoar a cidade. A olhos nus, um fenômeno inexplicavelmente divino.
Raymond podia sentir os corvos se aproximando. Catherine também. Diferente do sobrinho, ela estava cansada demais para observar pássaros brilhantes. Estava triste, estava exausta. E sabia muito bem que, na manhã seguinte, deveria erguer-se e voltar ao trabalho.
Ainda que insistisse pela companhia, eventualmente Raymond aceitou a derrota. Decepcionado, voltou para seu quarto, tentando recuperar o ânimo para observar a noite de corvos.
Trancou a porta novamente, encarou o copo d’água vazio, retirou o roupão e caminhou até sua cobiçada cama novamente. Antes que pudesse confortar-se no colchão macio, ouviu uma batida, e, depois, outra batida.
Elevando a voz, xingou Raymond pela parede, até perceber que o som que ouvira não havia vindo da porta do quarto, mas da janela. Lá, um corvo peculiar a aguardava, isso porque era azul e brilhante. Um animal que representava uma memória que nem deveria estar ali.
Uma batida é ouvida novamente quando o bico da ave encontra grosseiramente o vidro. Ele pedia para entrar. Catherine, com lentidão causada antes pelo sono e depois pela cautela, aproximou-se da janela e a abriu, liberando passagem para o animal místico.
A ave azulada e reluzente pulou para dentro do quarto, sem farfalhar demais suas asas, e pousou sobre a penteadeira. Era um corvo pequeno, menor do que os que Catherine já havia encontrado em outras noites como aquela. Seu bico era curto, como se mal formado, e constantemente torcia seu pescoço para o lado enquanto encarava a mulher ruiva.
O que está fazendo aqui, Catherine perguntou ao corvo, buscando entender a quem pertenceu aquela memória perdida. Como resposta, recebeu apenas a cabeça inquieta do animal. O vento frio e gotículas da noite chuvosa invadiram o quarto enquanto a mulher pensava o que fazer.
Um corvo feito de lembranças poderia ser um evento sobrenatural para todos dentro e fora daquela cidade condenada pela chuva de memória, mas Catherine já lidara com muitos anteriormente. Normalmente, atuavam como mensageiros ou microfones, apenas anunciando frases ditas ou ouvidas por aqueles que já se foram. Aquele, no entanto, não parecia na pressa de compartilhar do que era feito.
Farta de esperar, e cobiçando sua cama acima de tudo, convidou o corvo a sair de seu quarto, apontando vigorosamente para janela aberta. Vamos, saia logo daqui, disse, ache alguém que se interesse em você. Eu quero dormir.
O corvo não saiu do lugar. Manteve-se sobre a penteadeira e torceu a cabeça, sem tirar os olhos de Catherine. Ele não parecia ter interesse algum em voltar para a chuva, tampouco procurar por outra pessoa.
Catherine sabia que, se aquela memória não tinha motivos para ficar na Cidade do Porto, a melhor coisa a ser feita era devolvê-la para a Lagoa do Esquecimento, no outro mundo, de onde viera. Estendeu suas mãos para o lado de fora da janela aberta, sentindo-as serem molhadas pela chuva fria.
Puxando o ar para seus pulmões e concentrando-se em seus movimentos, Catherine teve seus olhos cobertos por um leve brilho azulado, assim como o do corvo. Passou os dedos molhados, que também reluziam, em sua frente, como se escrevesse em pleno ar. Usando a água como tinta, desenhou um círculo pequeno, semelhante ao tamanho do animal, e uma runa simples em seu centro.
Faltando apenas um movimento decisivo para o ritual expulsar o pássaro definitivamente, o corvo mudou finalmente de postura. Curvou-se para a frente e abriu seu bico, liberando um pouco mais de luz azul no ambiente. Catherine hesitou com seu movimento, curiosa pela mudança repentina.
De dentro do bico malformado do corvo, nenhuma palavra. Seres como aquele tinham o hábito de carregar as lembranças mais antigas de um falecido, ou as mais recentes. Risadas, pedidos de ajuda, eu-te-amos ou súplicas de perdão. Aquele, por mais estranha que sua existência fosse, tinha algo de diferente. Não pronunciou nenhuma palavra, apenas um som.
Um som grave saiu de dentro do animal e ecoou pelo quarto rústico. Um som grave, mas também ritmado. Um som ritmado, mas lento. Uma batida. O som de uma batida que parecia ir e vir lentamente, com calma e com carinho. Um batimento. Um batimento familiar.
Assim que o som do batimento chegou aos ouvidos de Catherine, sentiu seus olhos marejarem lentamente. Tremendo, levou as mãos até sua boca, impedindo o ritual de acontecer. Aos poucos, começou a entender a permanência do corvo e tudo que havia de diferente nele.
Ao dar um passo para frente, Catherine viu o corvo fechar seu bico malformado e, ainda abaixado, abrir suas asas. Ele iria voar, partindo dali finalmente após entregar um presente para a mulher: uma memória.
Tomada pelo nervosismo, Catherine lançou seu corpo contra a parede atrás de si. Fechou a janela com força antes que o pássaro pudesse atravessá-la. Não, ela disse entre soluços, você vai ficar aqui. Comigo. De fato, o corvo não possuía para onde ir. Ele estava preso naquele quarto.
Catherine conhecia seres e magias como aquele corvo, e sabia bem que não seria possível prendê-lo em uma gaiola ou domesticá-lo. Ele era mais que uma força da natureza. Era uma memória. Assim, ela percebeu: ela não tinha interesse algum no corvo, apenas na lembrança que o mesmo carregava pelo ar. Seu interesse era por aquele som único e familiar. Por aquela batida.
Passou os dedos indicadores abaixo dos olhos, molhando-os com suas próprias lágrimas. Novamente, viu suas mãos brilharem. Apoiou-se na cadeira próxima da penteadeira e pulou o mais alto que conseguia, agarrando o corvo desprevenido. Viu o pássaro se debater conforme o apertava forte.
Com a visão levemente obstruída pelo brilho azulado, Catherine juntou seus polegares no peito do animal, pressionando e puxando em direções opostas. Abriu caminho pelas pequenas penas como se partisse um pão francês em dois. O que encontrou, bem no centro, emitindo ainda mais luz, foi o coração do corvo malformado, uma pequena esfera azul. Ao encontrá-lo, o batimento retornou.
Com a respiração pesada e suas mãos ainda tremendo, correu seu olhar pelo quarto em busca de algo. Um recipiente, qualquer coisa que pudesse manter a esfera que tinha em seus dedos segura. Em cima de um móvel, junto a uma caixa de tralhas, viu uma pequena e delicada caixinha de música. Soltou o corpo já sem brilho do corvo no chão e estendeu o braço até a caixinha.
Enquanto o corpo escuro do animal místico se desfazia, esquecido, Catherine arrancou a bailarina dourada que dançava ao som da melodia suave. Também removeu o pequeno mecanismo que emitia o som, transformando-a em uma caixinha sem beleza e sem vida.
Com o cuidado de um mundo inteiro em suas mãos, a mulher posicionou a esfera brilhante no centro da caixinha, bem onde a bailarina costumava dançar. O batimento continuou a ecoar até que Catherine fechasse a caixinha.
A lembrança estava segura naquela caixinha e ao alcance de Catherine, que não passaria mais nenhum dia sem abrir para ouvir aquele batimento. Deitou-se finalmente na cama macia e pressionou a caixinha contra seu peito. Fechou os olhos.
No silêncio da noite, com a caixinha de música fechada, Catherine passou a ouvir a batida lenta do seu próprio coração. A mesma batida que ecoava da esfera quando aberta. A mesma batida que seu bebê uma vez ouviu dentro de seu ventre. A mesma batida.