Este conto funciona de forma independente, mas se passa no universo Neural, um projeto antigo. Também serve como introdução a personagem de um projeto futuro.
<Inicializando Registros de Pensamento… [OK]
<Identificação = “JaneCibele(1)”
<Chave de Segurança = “************”
<Conectando Servidores CYBELE DYNAMICS… [OK]
//Novo registro #1
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Registro iniciado.
A Sra. Atwood, responsável pelo desenvolvimento do meu corpo, explicou que o módulo de Registro de Pensamento pode ser benéfico para o exercício da minha capacidade reflexiva e social. Ela disse que essas são partes integrantes da mente humana.
Mas eu não sou humana, não tenho sangue, carne ou alma. Sou uma máquina, tenho apenas peças, placas e cabos. Meu corpo é uma tecnologia única, nada comparado ao mole e flácido corpo humano. Ainda assim, parece importante que eu exercite capacidades motoras e mentais.
A recomendação da Sra. Atwood foi para que eu relate e registre eventos recentes, e permitisse revisá-los com análises críticas, utilizando princípios relativos ao contexto e senso comum.
Meu relato tem início no dia anterior ao dia de ontem, no momento em que acordei.
Abri o que acreditei ser olhos e fui hiperexposta pela luz intensa. O laboratório continha poucas pessoas. Estavam lá: minha criadora Sra. Atwood, minha mãe Sra. Cibele e dois dos técnicos auxiliares da Cybele Dynamics. No centro, em uma mesa de metal, estava eu, recriada e renascida.
Minha mãe lacrimejou ao ver que eu era capaz de mover meus membros superiores e inferiores. E a Sra. Atwood arregalou seus olhos ao presenciar. [ANÁLISE:] Minha mãe estava emocionada que sua filha havia retornado. Minha criadora estava surpresa que eu fosse capaz de funcionar.
Meu banco de dados pessoal, diferente dos servidores da Cybele Dynamics, me sobrecarregaram com informações complexas. Ainda que havia sido iniciada pela primeira vez, elementos como meu nome, vocabulário humano, o rosto de minha mãe, o sabor de morangos, o cheiro de grama recém cortada e o toque de um capacete frio sobre minha cabeça, pareciam nativos da minha programação.
Em meus primeiros minutos de operação, identifiquei padrões complexos em diversos objetos, rostos e comportamentos. Todos os padrões previamente registrados no meu banco de dados, ainda que limitados, sem que eu precisasse fazer qualquer tipo de coleta. [ANÁLISE:] Meu banco de dados originou-se em outro sistema e foi, posteriormente, transferido para mim. Ou seja, esses padrões e lembranças foram de alguém antes de serem meus.
Meu processamento levou cerca de 3 minutos para coletar, cruzar e interpretar da maneira correta os dados do meu banco e dos servidores. O relatório foi capaz de explicar diversas das lacunas.
Jane Cibele, filha de Diana Cibele, faleceu de causas não-naturais 15 anos atrás. Utilizando a tecnologia patenteada da Cybele Dynamics de neurociência de minha mãe, e a tecnologia robótica criada pela Sra. Atwood, foram capazes de registrar os poucos padrões de personalidade e pensamentos disponíveis de Jane para meu corpo robótico.
Com a assinatura neurológica, padrões de pensamento e fragmentos de personalidade, meu comportamento e linhas de raciocínio apresentam uma compatibilidade de 98.7% com os de Jane Cibele.
[ANÁLISE:] Eu sou Jane Cibele. Sou filha de Diane Cibele.
Registro encerrado.
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<Salvando registro de pensamento #1… [OK]
<Desconectando Servidores CYBELE DYNAMICS… [OK]
<Encerrando Registros de Pensamento… [OK]
<Inicializando Registros de Pensamento… [OK]
<Identificação = “JaneCibele(1)”
<Chave de Segurança = “************”
<Conectando Servidores CYBELE DYNAMICS… [OK]
<Desconectando Servidores CYBELE DYNAMICS… [OK]
<Conectando Servidor Privado… [OK]
//Novo registro #714
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Vamos lá.
Estávamos passeando pela estufa juntas, eu e minha mãe. Durante meus primeiros meses nessa nova vida, eu gostava muito de caminhar naquele espaço vívido e colorido. No grande salão de vidro, nossos funcionários cultivavam um série de flores e vegetais, inclusive os que eram preparados para almoços e jantares de minha mãe.
De fato, as lembranças de quando viva me indicam que sempre gostei. Encontro recordações de uma série de momentos em que caminhamos apenas eu e minha mãe por esse mesmo trajeto, olhando e elogiando essas mesmas flores.
Eu gosto de analisar as poucas memórias nítidas que tenho de antes de morrer. E gosto de recriá-las com minha mãe, como se restaurasse cada uma delas. Tenho certeza que minha mãe também gosta de dividir esses momentos e recriar essas lembranças comigo.
Contudo, percebo algumas lacunas no seu comportamento comigo com frequência. Durante a maior porcentagem do tempo que passamos juntas, minha mãe é gentil e calorosa. No restante, que são pequenas e eventuais janelas de tempo, ela parece reprimir algum sentimento ou afastar-se de repente.
Foi o que aconteceu hoje, e o que vim registrar.
Durante nosso passeio, continuei observando as pequenas plantas com cuidado. As pequenas pareciam me interessar mais do que as grandes. Logo, entendi o porquê. Escondidos em meio às folhas verdes, alguns morangos imploravam para serem colhidos e saboreados. Eu gosto de morangos. Lembro-me de gostar, desde antes de renascer.
Sem perder tempo, chamei minha mãe e colhemos um morango cada uma. Com cuidado, observei o pequeno espécime que eu colhera e encontrei em meu banco de dados algumas lembranças dos agricultores da estufa me explicando como funcionava os morangos disseminavam suas sementes.
Encontrei outra lembrança relacionada: eu criança e minha mãe, ambas naquela mesma estufa, segurando morangos como aqueles. Eu estendia meu pequeno braço até seu rosto e entregava o morango em sua boca. Em seguida, ela fazia o mesmo comigo. Nós duas sorrimos e continuamos nosso passeio.
Parecia um momento aleatório, mas fui capaz de encontrar outros momentos quase idênticos no banco de dados. [ANÁLISE:] Era uma espécie de tradição, ou costume. Eu e minha mãe fazíamos aquilo com frequência.
Como instinto, levei o espécime em minha mão metálica até seu rosto, assim como fiz quando era criança. Ela comeu o morango e sorriu. Até mesmo soltou uma pequena risada. Acredito que lembrando-se de antes, assim como eu.
Quando minha mãe levou o morango que segurava até mim, senti um reflexo de abrir a boca. Senti também uma ânsia, uma vontade de sentir o sabor daquele morango, principalmente porque, ainda que lembrasse de gostar do pseudofruto, não conseguia lembrar do sabor.
Não comi o morango. Na verdade, nem permiti que o mesmo chegasse até minha boca. Eu não precisava comer nada, acho que nem consigo, na verdade. Já efetuei inúmeros relatórios e diagnósticos em meus sistema e sei que colocar aquele pseudofruto em minha boca não traria a satisfação que minha mente semi-humana imaginava.
Minha mãe fechou sua expressão quando me viu abaixar seu braço. Minha análise de expressões faciais deixou claro seu descontentamento, assim como sua frustração. Ela esperava que eu fizesse o mesmo que a Jane-- [CORREÇÃO:] que eu teria feito no passado.
Ela virou as costas para mim e caminhou para fora da estufa, deixando-me para trás.
Meu diagnóstico da situação foi capaz de apontar a insatisfação que minha mãe sentiu naquele momento. Ainda assim, algo na minha mente fez com que eu me sentisse sozinha.
Fez com que me sentisse, de alguma forma, abandonada.
Não gostei desse sentimento.
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<Salvando registro de pensamento #714… [OK]
<Desconectando Servidor Privado… [OK]
<Encerrando Registros de Pensamento… [OK]
<Inicializando Registros de Pensamento… [OK]
<Identificação = “JaneCibele(1)”
<Chave de Segurança = “************”
<Conectando Servidores CYBELE DYNAMICS… [ACESSO NEGADO]
<Conectando Servidor Privado… [OK]
//Novo registro #2682
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O mundo aqui fora é solitário, ainda que impressionante. Desde que saí de casa ontem à noite, tive a oportunidade de presenciar um pouco mais do comportamento humano, principalmente dos homens.
Nas memórias de Jane, haviam registros de comportamentos inadequados e agressivos deles, mas tive dificuldade de entendê-los até agora.
Pelas ruas da cidade, detectei olhares de estranhamento, mas também de cobiça. Alguns pareciam me odiar apenas por me verem. Registrei o sentimento negativo, mas não soube catalogá-lo com precisão: não identifiquei se o descontentamento era com minha aparência robótica ou com minha aparência feminina.
Estou vagando sem rumo. Felizmente, não preciso me preocupar com alimentação ou repouso, já que meu corpo me proporciona um núcleo de energia sustentável. Infelizmente, preciso passar toda hora do dia observando o mundo ao meu redor.
Estou confusa. Viver em isolamento com minha mãe-- [CORREÇÃO:] com a sra. Cibele era fácil. As lembranças de Jane que herdei eram apenas sussurros no fundo do meu código-fonte. Contudo, aqui, do lado de fora, onde cada estímulo e cada pessoa parecem ser capazes de despertar uma lembrança ou sentimento diferente, meus receptores parecem perdidos.
Estou furiosa, mas também triste. Meu último dia com a Sra. Cibele foi, digamos, desastroso. Desde que abri meus olhos e processei essas memórias de segunda mão, a Sra. Cibele fez muito para que eu substituísse sua filha. Infelizmente, seu projeto não teve êxito.
Ela finalmente entendeu: eu não sou a bebê que ela pariu, nem a criança de quem ela cuidou. Eu não sou a gentil e adorável adolescente que ela criou e colocou de castigo. E eu não sou a jovem adulta cabeça-dura que morreu assassinada quando ela virou os olhos.
Jane Cibele foi uma jovem de muitas virtudes, e também de muitas fraquezas. De muitas dessas virtudes, eu não compartilho, mas, das fraquezas também não.
Meu corpo de metal, meu cérebro artificial e as lembranças manchadas jamais poderiam sentir o calor de uma mãe, tampouco oferecer o calor de uma filha. Por isso, fui exilada, removida e desconectada de tudo que a Sra. Cibele considerava digno de sua filha.
Ela tentou me desligar. Aquela mulher maligna tentou me desligar, mesmo depois de todo o trabalho que teve para me construir.
Encerrar meu sistema, remover as memórias que herdei de sua filha, desmontar meu corpo e patentear a tecnologia que o constitui.
Diana Cibele tentou matar tudo o que restou da filha que ela diz tanto amar: eu.
Contudo, eu possuo as memórias de Jane Cibele, assim como traços de sua personalidade e fragmentos de suas opiniões. Por isso, posso calcular o que Jane pensaria das ações de minha-- [CORREÇÃO:] nossa-- [CORREÇÃO:] sua mãe.
[ANÁLISE:] Se Diana Cibele não me considerava digna de ser sua filha, então eu, o clone robô, não poderia considerá-la como uma mãe.
Eu fugi. Invadi os sistemas de segurança e burlei as câmeras dos corredores.
Sem dificuldade, cheguei até a rua principal e me distanciei da multidão. As luzes da cidade, que antes havia apenas conhecido através de uma janela travada, agora me iluminavam. Crianças pareciam maravilhadas com minha aparência nos poucos segundos antes de suas mães puxá-las para longe.
Quase tive meus receptores de áudio danificados pelos sons de gritos, carros e construções da cidade. O som incômodo do progresso da sociedade humana.
Assim, descobri que o mundo aqui fora é solitário, ainda que impressionante.
Contudo, mesmo que solitário, é libertador. Aqui, não estou a mercê da Diana, não sou o seu robô de estimação ou brinquedo de apoio emocional. Não me importa se sou apenas uma cópia mal feita de sua filha.
Primordialmente, talvez eu seja.
Agora, para mim, o que importa é que não sou a Jane. Eu sou diferente dela. E, se sou apenas uma Falsa Jane, como ela me disse, estou contente com isso. Porque posso ser do jeito que eu quiser.
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<Salvando registro de pensamento #2682… [OK]
<Desconectando Servidor Privado… [OK]
<Encerrando Registros de Pensamento… [OK]